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As avós das modernas corporações globais e suas práticas de gestão da informação e do conhecimento

Por Sergio Martins* |



Talvez você não saiba, mas o mundo corporativo como você o vê hoje remonta há séculos. Isso mesmo, séculos! Se você trabalha em uma grande empresa, isso fica mais evidente, pois muitas das suas práticas e dinâmicas de funcionamento – sobretudo das multinacionais – provém de antigas e gigantescas companhias da época do início do Capitalismo. O Capitalismo foi um fenômeno de relacionamento social que alterou o sistema produtivo e as necessidades materiais do homem. Embora não seja caracterizado somente pelo uso de dinheiro – afinal, vários povos da Antiguidade tinham suas moedas sem necessariamente viverem num regime capitalista – o Capitalismo pauta-se pela acumulação de capital e invenção/satisfação de necessidades há pelo menos 400 anos, quando foi forjada a mentalidade das grandes corporações do mundo atual.


Tudo começou quando um evento que marcou o final da Idade Média e fez surgir a Idade Moderna afetou a milenar rota de comércio oriente-ocidente. Desde a Antiguidade, a rota da seda com o tempo deixou de ser uma rota estritamente de comércio de seda para se tornar a maior rota comercial do mundo, insuperada até hoje em extensão. Nesta rota eram comercializados seda, pedras preciosas e semi-preciosas, especiarias, plantas e produtos diversos, que vinham do oriente longínquo, paravam nos entrepostos e oásis do oriente médio e chegavam ao ocidente. Porém, em 1453, os turcos otomanos derrubaram as até então imbatíveis muralhas de Constantinopla, principal acesso via terrestre à Europa, e fecharam a milenar rota comercial. As potências europeias julgavam ser menos oneroso abrir novas rotas marítimas de acesso ao oriente do que se envolver num confronto armado contra o poderoso império otomano, uma vez que diversas tentativas em séculos passados se mostraram infrutíferas, fato conhecido como As Cruzadas.


É no Mercantilismo que nascem os embriões das multinacionais modernas, herdeiras da Mastodônticas e poderosas Companhias das Índias

Estas iniciativas de abertura de novas rotas impulsionou a expansão marítima, as grandes navegações, a descoberta da América, dentre outros feitos, mas o mais importante deles foi o fato de ter dado início à primeira era do Capitalismo, já na virada dos anos 1500 para 1600: O Mercantilismo. E é nesse período que nascem os embriões das multinacionais modernas, as mastodônticas e poderosas Companhias das Índias. Sim, no plural. Houve várias Companhias das Índias, visto que muitos países europeus tinham a sua – ou as suas. Sim de novo, pois alguns desses países tinham duas e gigantescas Companhias das Índias: a Oriental (com exploração comercial da Ásia) e a Ocidental (com exploração comercial das Américas). Porém, para sermos breves, falaremos de duas das mais importantes delas: A Honorável Companhia das Índias Orientais Britânicas, ou British East India Company – que aqui chamarei de BEIC – e a Companhia das Índias Orientais Holandesas – que chamarei de VOC ou Verenigde Oost-Indische Compagnie.


Estas Companhias de navegação eram empreitadas complexas e tudo o que diz respeito a elas e suas práticas é superlativo. Consideradas companhias majestáticas, eram assim chamadas por possuírem privilégios outorgados pela realeza como a exclusividade ou o monopólio no comércio das metrópoles com as colônias distantes, extraindo suas riquezas destas e as revendendo no império. Eram outros tempos, claro: as Companhias das Índias eram companhias marítimas, possuíam esquadras com centenas de navios e, inclusive, possuíam armadas militares de escolta, isto é, uma marinha privada para persuadir colônias rebeldes a negociar, além de combater a crescente pirataria. Colônias que se recusassem a negociar, eram invadidas e bombardeadas pela armada privada destas companhias, tudo autorizado pelo poder real, imperial ou governamental de suas respectivas metrópoles. Além disso, tais Companhias eram o orgulho de seus países. Por exemplo, na sede da BEIC em Londres havia um quadro de grandes dimensões representando a submissão dos povos ou colônias orientais doando suas riquezas à Britannia, deusa bela e alva, flanqueada por anjos (propósitos divinos), pelo Leão (símbolo da Bretanha) e Hermes (deus grego do comércio e... da informação!).


Pintura na sede da BEIC representando a submissão dos povos orientais à Britannia.


Para se ter uma ideia, aqui vai um dado chocante: se tais companhias fossem comparadas com as empresas de hoje, atualizando-se monetariamente seus ativos de comércio global, elas seriam simplesmente colossos empresariais globais inimagináveis

Além da BEIC britânica, quase ao mesmo tempo a Companhia das Índias Orientais Holandesas (VOC) surge no século de Ouro Holandês, até hoje o período mais importante da história dos Países Baixos, quando a casa de Orange tornou-se, junto com a Bretanha, a França e a Espanha, uma potência global. A VOC chegou mesmo a ser mais poderosa e influente que sua contraparte britânica, embora tivesse vida mais curta na história. Para se ter uma ideia, aqui vai um dado chocante: se tais companhias fossem comparadas com as empresas de hoje, atualizando-se monetariamente seus ativos de comércio global, elas seriam simplesmente colossos empresariais globais inimagináveis. Ao valor de hoje, valeriam pouco menos que todo o PIB norte-americano, ou quase 8 trilhões de dólares!!! Isso mesmo, pouco menos que o PIB dos EUA, a maior potência econômica do mundo contemporâneo. Só a VOC, por exemplo, valeria mais do que as 20 maiores e mais valiosas empresas do mundo juntas! Até a gigante petrolífera saudita, a Saudi Aramco, vale metade do que valeria a VOC. E mesmo as onipresentes Google e Microsoft correspondem a uma fração do seu valor. A inglesa BEIC possuiria aos dias de hoje magnitude semelhante.


VOC em comparação com as 20 maiores empresas contemporâneas. Fonte: https://www.visualcapitalist.com/most-valuable-companies-all-time/



Maiores companhias da história. Fonte: https://www.visualcapitalist.com/most-valuable-companies-all-time/


Já há 400 anos estas estratosféricas Companhias sabiam do valor da informação e dos registros para a manutenção de seu status, poder, influência e riqueza

Voltemos à pintura do quadro da sede londrina da BEIC: atente para a representação em primeiro plano do deus Hermes. Ele não está lá à toa. Um pergaminho na sua mão nos lembra não somente que trata-se do deus do comércio mas – e principalmente – do poder da informação. Já há 400 anos estas estratosféricas Companhias sabiam do valor da informação e dos registros para a manutenção de seu status, poder, influência e riqueza. Os relatórios gerados por e para essas companhias eram ativos de informações estratégicas, visto que contemplavam uma série de aspectos:


  • Quantitativo de produção de bens e mercadorias

  • Preços de bens e mercadorias

  • Fontes de matérias-primas

  • Tratados e contratos

  • Várias outras informações


Para gerenciar estes documentos, listas alfabéticas e temáticas eram instituídas nos arquivos, contendo dados complementares (ou seriam metadados?) referentes às mais diversas localidades, datas e menções a documentos legais relacionados, como decretos, bulas, dentre outros. As informações contidas nos relatórios iriam compor outros documentos, como os balanços financeiros de tais companhias, influenciando significativamente as bolsas de valores. Sim, outra informação surpreendente: as bolsas de valores remontam há mais de 500 anos (A primeira Bolsa, em Bruges, surge em 1409). Em Amsterdam os comerciantes apostavam num mercado futuro de mercadorias, como plantas opiáceas e especiarias como chá, pimenta e canela que viriam a ser trazidas pelos navios meses depois. A quantidade era especulada e, assim, estabelecia-se o preço de mercado futuro. Na bolsa não somente se comercializavam documentos e ações sobre preços futuros das mercadorias, mas também valores e dividendos distribuídos pela própria Companhia das Índias. Dividendos também já são distribuídos há séculos: as Companhias das Índias foram as primeiras organizações na história a abrir seu capital, no século XVII (anos 1600).


Dividendos também já são distribuídos há séculos: as Companhias das Índias foram as primeiras organizações na história a abrir seu capital, no século XVII (anos 1600)

Tal como hoje em relação aos segredos industriais, os documentos eram guardados à maneira militar nos arquivos das Companhias das Índias e furtos de documentos e informações eram frequentes. Informações sobre melhores rotas, os melhores mapas, local de produção de mercadorias, melhores preços, entrepostos mais vantajosos, dentre outros inúmeros documentos compunham um arsenal de conhecimento sem precedentes até então. E, também assim como hoje, informações sobre política e atos militares influenciavam as bolsas e eram de particular interesse a estas Companhias. Especialmente a VOC exigia de seus funcionários em expedição relatórios regulares, semanais, mensais ou anuais, contendo dados inclusive estatísticos. O Informe Geral era um relatório com estatísticas utilizado para fins estratégicos da VOC. A gestão e a segurança destes documentos forçavam a BEIC e a VOC a manterem contratos vitalícios com os produtores de informações envolvidos, de modo a manter a fidelidade e inibir traições e vazamento de informações para a companhia concorrente.


As Companhias das Índias foram os primeiros empreendimentos humanos a estabelecer divisões departamentais

Não apenas no que se refere à Gestão de documentos e informação, as Companhias das Índias foram, além disso, os primeiros empreendimentos humanos a estabelecer divisões departamentais. Nestas Companhias nascem as divisões de estatística, como já mencionado, e também a divisão de logística, cujos estudiosos e engenheiros desenvolviam métodos e mesmo navios apropriados a cada tipo de carga, além de analisarem as melhores, mais curtas e mais seguras rotas. Também cada expedição era composta de esquadras de, no mínimo, 8 navios levando cartógrafos, que desenhavam e mediam distâncias, localidades, relevos e topografias. Nascia o departamento de cartografia de tais companhias. Para a comunicação com povos distintos e variados, os navios levavam linguistas e filólogos, além de gramáticos, que desenvolviam glossários para uma melhor comunicação e comércio com os povos do oriente. Surgia, assim, o departamento de gramática e linguística destas companhias.


Pensa que acabou por aí? Foram instituídos, ademais, departamento de botânica e zoologia: expedições levavam biólogos para estudo e aquisição de plantas e animais exóticos de interesse não somente para a Companhia, mas também da metrópole. Na volta da expedição, navios chegavam carregados tanto de mercadorias quanto de incontáveis amostras de plantas e animas, muitos deles hoje nos museus de Ciências Naturais de Londres e Amsterdam. Esses eram o departamento de botânica e zoologia dentro de tais companhias, fazendo nascer as práticas de taxonomia (sim, outra revelação surpreendente, a taxonomia nasceu da classificação de plantas e animais) e taxidermia (prática de empalhar espécimes para estudos). Estas amostras taxidérmicas e classificações taxonômicas auxiliaram inclusive Charles Darwin no desenvolvimento de sua teoria da evolução das espécies.


Também os departamentos de imprensa e tipografia se valiam das já então aperfeiçoadas prensas de tipos móveis, imprimindo os relatórios e toda sorte de valiosos documentos. Os tipógrafos eram contratados a peso de ouro e possuíam muitas vezes contratos vitalícios, sendo os que recebiam melhor remuneração entre todos os funcionários pois, por imprimirem documentos confidenciais e estratégicos, tinham acesso aos segredos mais vitais destas organizações. De modo análogo, seriam como o departamento de TI – Tecnologia da Informação – cujos profissionais, hoje, podem ter acesso aos segredos industriais, econômicos e financeiros das companhias modernas.


Somando-se a isso, as Companhias das Índias foram as primeiras organizações a estabelecerem brasões como símbolos, antes práticas restritas à heráldica de bandeiras e escudos reais ou de Estado. Utilizando esta prática para identificação de seus navios e de sua imagem, estabelecem pela primeira vez no mundo o uso de logotipo comercial. Estas insígnias - ou logos - tremulantes nos mastros dos navios, juntamente com a armada militar de escolta, atemorizavam até mesmo os mais perigosos piratas.


Logotipos da BEIC e VOC.


Pode-se perceber que, com as Companhias das Índias Orientais, nascem as primeiras práticas e métodos comerciais e logísticos, a divisão departamental e métodos de gestão de documentos como ativos de conhecimento. Práticas bem familiares no mundo contemporâneo, não? Obviamente os tempos eram outros e, diferentemente dos dias de hoje – com satélites e internet que possibilitam comunicações em tempo real – o ciclo de renovação da informação e dos documentos se davam em meses ou anos. Mas antes destas Companhias o mundo era muito, muito mais estático e são precisamente estas organizações que fazem o mundo e o tempo comercial começar a acelerar pela primeira vez na história. Não à toa a Cartografia daquela época instituiu paralelos e meridianos para marcar o globo em graus, mas adicionaram também variáveis temporais como minutos e segundos para dar mais precisão aos tempos de deslocamento dos navios. Mesmo hoje o Google Maps e o sistema GPS usam geolocalização por paralelos, minutos e segundos como medidas de referência (54º 22’ 37”).


Antes destas Companhias o mundo era muito, muito mais estático e são precisamente estas organizações que fazem o mundo e o tempo comercial começar a acelerar pela primeira vez na história

Estas Companhias duraram séculos (A BEIC encerrou suas atividades após 274 anos de operação) e com suas derrocadas encerrou-se também o Mercantilismo. Os motivos foram diversos, mas sobretudo uma nova fase do Capitalismo: a Revolução Industrial, que iria reconfigurar e modernizar as práticas comerciais, quebrando o monopólio destas outrora gloriosas e poderosas Companhias e estabelecendo ligas e alianças - ação precursora dos modernos blocos econômicos comerciais - como a Liga Hanseática. Nesta sucessão, uma herança e algumas verdades se mantiveram intactas: o poder estratégico da informação (incorporado em dados e documentos) e a importância de seu sigilo e segurança são aspectos vitais para o sucesso de qualquer empreendimento. Na Revolução Industrial a importância da informação alcançaria patamares igualmente interessantes. Mas isso é assunto para outra discussão.


 

* Sergio Martins é professor das disciplinas de eixo tecnológico do curso de Biblioteconomia da Universo

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